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Artigo – Um novo direito

As coisas da vida passam – e passam muito depressa. Teria sido ontem que, peito inflado de entusiasmo, dava meus primeiros passos pelo mundo das leis? Não. Mais de três décadas se passaram. Mas parece ter sido ontem!

Naqueles dias li um fascinante estudo concebido pelo Conselho de Inteligência dos EUA, buscando prever a realidade de hoje – ou seja, a de algumas décadas à frente.

Sobre o nosso país os pesquisadores norte-americanos indicaram que a partir de 2020 seria um dos maiores exportadores mundiais de alimentos e de petróleo – um cenário que hoje torna-se real diante dos nossos olhos.

Anotaram, então, e com imensa lógica, que toda a riqueza daí advinda poderia ensejar um ciclo de desenvolvimento sustentável e de longo prazo que nos levaria, em pouco mais de uma década, aos portais do tão sonhado “Primeiro Mundo”.

A expressão “poderia” não veio por acaso. E assim porque havia um “dever de casa” a ser feito, qual o de reduzir-se o nível de corrupção e os índices de criminalidade. Caso negligenciada tal tarefa haveria um desperdício de riquezas tal que seguiríamos rumo a uma realidade de desigualdade e conflitos, deitando fora uma oportunidade ímpar.

A opinião dos autores do estudo foi no sentido de que não conseguiríamos.

Vou à janela. Contemplo o nosso Brasil tão desigual e dividido, tão violento e cruel, para, com infinita tristeza, reconhecer que realmente não conseguimos. Que minha geração fracassou. Que eu fracassei.

Tanto maior minha vergonha quando a culpa por esta triste derrota não é de todo um povo, mas de sua parcela mais versada na ciência do Direito. Sim, somos nós, “doutores das leis”, os culpados. Nossa culpa, nossa tão grande culpa. Não vimos, ou não quisemos ver, o quão distantes estamos do dia-a-dia das pessoas.

Não enxergamos que a poucos metros das imponentes sedes de nossas instituições a lei que impera é a da selva. A do crime. Lugares nos quais nossos brasões, distintivos e títulos valem menos que o deliberar de algum chefe de quadrilha. Ou será que enxergamos este horror mas nos omitimos?

A despeito de tanta ciência, ou talvez por conta dela, nossas masmorras, digo, prisões, não contemplam que miseráveis – cujos gritos, abafados por endêmicas sessões de tortura, não escutamos.

Desviamos o olhar dos já comuns linchamentos praticados na periferia de nossas mais civilizadas cidades. Aliás, preferimos erguer muros físicos ou humanos, na forma de cercos policiais, a fim de que não precisemos machucar nossas vistas.

Sangramos, com nossa ineficiência, toda uma economia. Afinal, quem investirá de forma séria em uma terra carente de estabilidade jurídica? Na qual o exercício de um direito pode depender de anos, ou mesmo décadas, de dispendiosas ações?

Vitimamos a credibilidade do regime democrático permitindo o acesso a recursos públicos e aos mais altos cargos da República a alguns cuja admissão para um simples estágio em nossas instituições seria negada por conta de péssimos antecedentes.

Contemplamos, já, um país sob séria crise de autoridade. Carente de ordem. Com nosso mundo a apequenar as ruas e estas a nos apequenar. E parecemos não perceber este quadro porquanto submersos na rotina asséptica das instituições, em cujos corredores muitos ainda se curvam à nossa passagem.

Não admitimos, enfim, que o belíssimo sistema legal que construímos, complexo a ponto de inspirar bibliotecas inteiras, simplesmente não funciona. Aliás, por incompatível com a sociedade dinâmica deste início de milênio, não funcionará jamais.

Perplexos, porém temendo o novo, insistimos em mais da mesma coisa, inflando nossos códigos e quadros a um ponto de quase total insustentabilidade.

Poderia, com imensa facilidade, provar cada assertiva até aqui lançada com dados estatísticos os mais confiáveis – e os tenho aos borbotões. Poderia citar exemplos os mais pungentes – e igualmente os possuo em grande número.

Mas assim não farei – ao fim do cabo, a realidade aqui exposta nos é de todos conhecida. Seja este texto, pois, apenas um singelo grito. Um chamado à consciência. Seja ele a voz de uma criança a exclamar que o rei está nu.

As coisas da vida passam – e passam muito depressa. Avizinha-se, já, o entardecer de minha geração. O meu entardecer. Amanhã já estaremos a entregar este país e suas instituições à geração seguinte. Que ela nos seja clemente.

Que a história nos seja misericordiosa.

Lanço, agora, um olhar ao futuro. Aos desafios que aguardam nossos herdeiros.

Contemplo o tempo e fico a meditar sobre os cavalos. Ao longo de milênios coube-lhes – e com quase exclusividade – o transporte de pessoas e de bens. Seja símbolo deste ciclo uma fotografia da famosa 5ª Avenida de Nova York, datada de 1900, retratando um imenso congestionamento de carruagens – e um único carro no meio delas.

Precisos 13 anos depois alguém registrou novamente aquele cenário. O trânsito tumultuado continuava, porém agora tomado pelos carros – havia uma única carruagem, perdida no canto da avenida.

Quebrou-se, em pouco mais de uma década, um monopólio milenar. E superando-se desafios imensos: havia que se criar duas novas indústrias, a automotiva e a petroleira, novos modelos de negócios, nova infraestrutura e um novo ambiente.

Deu-se a este fenômeno o nome de “disrupção”, definida esta como o surgimento de um novo modelo que inviabiliza ou transforma radicalmente o anterior.

Partindo deste exemplo uma conceituada consultoria norte-americana concluiu, ao cabo de elaborado estudo, que temos pela frente a década mais disruptiva da história. E ela começa agora – na verdade, já começou. Descortina-se logo ali no horizonte não uma evolução, mas verdadeira revolução.

O primeiro de seus ingredientes está na geração de energia elétrica a partir do sol. Deverá, em ínfimo lapso, ser mais barata e simples para os consumidores que a aquisição pelas vias convencionais.

O segundo está nas baterias – a cada dia menos custosas e mais eficientes, em breve espaço de tempo terão condições de integrar uma nova matriz energética, com impacto nas residências, nas indústrias e nos transportes.

O terceiro fator reside na informática. Será questão de ano ou dois termos sistemas capazes de revolucionar nossa matriz de transportes. Já experimentei um deles a bordo de um veículo elétrico, um singelo taxi de praça que se conduzia sozinho pelas ruas de uma movimentada cidade – e posso testemunhar seu potencial.

Considere estes três elementos e surgirá a verdade clara de que estamos no limiar de dias fascinantes! Curiosamente, detectou-se que o povo mais ávido por estas mudanças é precisamente o brasileiro – 95%, contra, pasmem, 60% dos norte-americanos. Ou 37% dos alemães. Ou, ainda, 28% dos japoneses.

Prevê-se, de forma consistente, uma década única, em cujo final estas duas novas matrizes, de energia e de transportes, transformarão – e de forma positiva – nossas economia e estilo de vida. Imagine, por um átimo, quantas coisas maravilhosas virão a reboque deste trem da história!

A eficiência e velocidade deste processo em nosso país dependerão – e de forma crucial – do mundo das leis. Será ele um instrumento de progresso ou uma arma dos reacionários, em tempos de mudança?

Considerado o sistema atual, temo que seremos inimigos do progresso – tenderemos a falhar, como temos falhado, na viabilização de um ambiente adequado aos negócios e bem assim possibilitando a velhos monopólios alguma sobrevivência extra.

Perdoem-me pela digressão, mas não há como coexistirem em uma mesma era carros elétricos autônomos e julgamentos de embargos de declaração em embargos de declaração opostos em embargos infringentes de apelação. Convenhamos: o contraste, imenso, fala por si só.

Antevejo toda uma nova geração a se perguntar, perplexa, sobre que caminhos tomar. O desafio é imenso: proporcionar um ambiente de ordem, segurança e estabilidade. Por onde começar?

Modestamente sugiro como primeira – e mais premente – tarefa a consolidação da harmonia no mundo das leis.

Conceitualmente cabe aos advogados buscar um julgamento justo. Aos membros do Ministério Público a promoção da justiça. E aos magistrados sua realização. Em sendo respeitados tais conceitos impera a serenidade. Ganham a população e o mundo das leis.

Pode acontecer, porém, uma quebra desta harmonia. Imaginemos um advogado que fique a defender uma inocência ou um direito claramente inexistente. Ou um membro do Ministério Público que se entenda como mero “órgão de acusação”. Ou, ainda, um magistrado que se pense Inspetor Javert.

As consequências deste desequilíbrio são terríveis – para os jurisdicionados e para o mundo das leis. Perde-se a confiança. Há reações. Começam os conflitos. Aqui e ali surgem os detratores de plantão, distribuindo aleivosias tão genéricas quanto injustas. Aos advogados lançam a pecha de “sócios de criminosos”, aos membros do Ministério Público a de “discípulos de Torquemada” e aos magistrados a de “meros carrascos da Santa Inquisição”.

Ao final deste conflito sem vencedores apenas restará uma terra arrasada – consulte-se a voz das ruas, a propósito.

Dia desses lia, pela pena brilhante de um Professor de Direito da Universidade de Columbia (EUA), sério alerta sobre o quão destrutiva tem sido vasta parcela do ensino jurídico ao formar profissionais mais focados na vitória que na ética profissional, mais seduzidos pelo sucesso que pelo interesse público.

Meditemos sobre isso. Ao absolver a qualquer custo contrapõe-se o condenar seja como for, e vice-versa – enquanto isso a justiça… ora, a justiça!

Que possamos, enquanto humanidade, preservar a grandeza de uma atividade das mais nobres e sérias que temos, da qual dependem a vida e a felicidade de tantos semelhantes nossos.

O desafio seguinte, não menos grave, consiste no emagrecimento da burocracia, cuja obesidade está a lesionar a saúde do mundo das leis e a do Brasil como um todo. Trata-se, também aqui, de um dever mais espiritual que prático.

Ouço, há décadas, que o mundo das leis está a modernizar-se. A eliminar os papiros adotando os benefícios da informática – que não são poucos, reconheço. Mas consistiria este processo, do qual aliás fiz parte, em eliminação de burocracia? Penso que não.

Consideremos a rotina de um magistrado que responde por dois juizados. Imaginemos que, atuando no primeiro deles, necessite de alguma informação sobre dado processo que tramita pelo segundo. Não pode ele simplesmente atravessar o corredor e obtê-la. Jamais. Se assim agir poderá ser responsabilizado administrativa e criminalmente.

Deverá ele enviar um ofício para sua pessoa, solicitando que forneça a si próprio dada informação. Horas depois, atuando no outro juizado, ele deferirá a si próprio o que a ele ele mesmo pedira. Fascina-me especialmente a parte final desses ofícios, quando o magistrado envia cordiais cumprimentos a si próprio e coloca-se à disposição dele mesmo sempre que dele ele precisar.

Isto acontece milhares de vezes todos os dias. É rotina. Humildemente, pergunto: adianta substituir o “ofício para si próprio” por um “e-mail para si próprio”? Não. Em verdade, o quadro fica ainda mais humilhante, por colocar em contraste com um novo milênio nosso atraso cultural.

Mudar este quadro é difícil, dado pairar sobre ele a cultura do “meu” – “mInha informação”, “meu setor”, “minha autoridade”, “meu banco de dados”. Já encontrei até quem falasse em “meus presos” – e quanta vontade deu-me de sugerir que os levassem para casa!

Eis aí um pecado que todos nós, em maior ou menor grau, cometemos. Dentro ou fora do mundo das leis. Mas neste, convenhamos, maior nossa falta – e mais graves as consequências, particularmente neste momento histórico.

Não subestimemos este aspecto. Vivemos em plena “era da informação”. Nossas economias – e até o crime – colhem os benefícios deste admirável mundo novo, virtualmente sem fronteiras.

Enquanto isso, no mundo das leis, as instituições não se falam. Praticamente não compartilham informações. Ficam cada qual em sua jurisdição. Ou circunscrição. Ou competência. Em seu “mundinho”, afinal, presas a ofícios e requerimentos, mantendo solenidades que, ao fim do cabo, nos custam muito caro.

Sigamos em frente, porém. Emergirá deste processo de simplificação o trabalho seguinte, qual o de definirmos onde, por quem e de que forma deve ser tratado cada fato da vida.

Há algum tempo li que dada Corte Superior apreciou assombroso caso envolvendo a captura de algumas minhocas para certa pescaria. Estatisticamente, quase metade de todo o nosso movimento processual envolve simples cobranças de dívidas fiscais. Pessoalmente, já assinei um precatório de R$ 0,54. Há meses passou pelas minhas mãos o sombrio caso de alguém processado ao longo de dois anos por conta da tentativa de furto de uma bicicleta.

Insistimos em tudo julgar através de um mesmo sistema – e acabamos quase nada julgando adequadamente. Na esteira desta visão míope mediocrizamos advogados, magistrados e membros do Ministério Público. Desmoralizamos a ordem pública. Desmotivamos o exercício da cidadania. E nos tornamos alvo de galhofas mil, eis a verdade.

Seria demais pensarmos em julgamentos preponderantemente orais, realizados por colegiados? A simplicidade do rito seria compensada pelo maior número de julgadores, de forma a prevenir os erros e convicções equivocadas de um só. Maior a complexidade e relevância social do caso, maior a quantidade de julgadores – mas sempre sob um rito simples e eficiente, que as pessoas consigam compreender.

Há mesmo necessidade de que tudo vá ao Poder Judiciário? Em países outros certos fatos são caso de polícia ou da administração pública, não algo a ser tratado judicialmente. Eis aí um bom tema para reflexão.

Que tal eliminarmos o retrabalho? A repetição de atos? Tomemos como exemplo mais veemente o das testemunhas ouvidas duas vezes – durante o inquérito policial e em juízo. Perdoando o trocadilho, tudo com imenso prejuízo.

E as formalidades inúteis? Não nos esqueçamos delas! Lancemos um olhar sobre o ritual sonolento das sessões de julgamento – a cada dia mais descaracterizadas, dada a busca angustiante por atalhos que permitam uma maior produtividade. Nossas leis, por incompatíveis com a realidade, estão a retirar a necessária majestade dos pretórios.

Há algumas décadas um genial advogado italiano, Piero Calamandrei, nos alertava para o fato de estarmos a isolar o processo da justiça. Não o ouvimos. E criamos um monstro.

Peço humilde licença para um desabafo. Todas as semanas, presente às sessões de julgamento da Câmara que integro, vejo na pauta centenas de processos. A esmagadora maioria deles não deveria estar ali – mas está. A julgarmos cada um conforme a solenidade exigida pelas leis pouco conseguiríamos. A apreciarmos cada um conforme os mandamentos da consciência pouco produziríamos. É quando vejo-me, após mais de três décadas como magistrado, a participar, desiludido, de uma justiça quase que “por atacado”, absolutamente triste e perigosa. E que pouco resolve, afinal.

Sob o sistema atual não há saída – a alternativa é responder perante os órgãos de controle e a população. Assim, seguimos em frente, julgando lado a lado casos simples e complexos, rasos e relevantes, da forma como for possível. Que erremos pouco, eis a súplica que faço ao Criador! Que erremos pouco!

Será tão difícil, meu Deus, devolvermos a dignidade ao mundo das leis em tornando lógico nosso sistema processual? Deve ser. Minha geração falhou neste dever. Sucumbiu diante da cegueira ávida de um sistema. Que a próxima seja mais feliz.

Listo, como derradeira ação emergencial a ser adotada pelos que nos sucederem, uma reflexão séria sobre criminosos e penas.

Um alerta: deixemos de lado, ao tratar deste tema, todo e qualquer princípio moral ou espiritual. Abandonemos as ideologias – e sejamos apenas pragmáticos. Sejam nossos guias, neste trecho do caminho, unicamente o vil metal e o egoísmo mais mesquinho.

A partir deste ponto de vista será fácil perceber que o nosso sistema penal é um péssimo negócio – para o país e sua população como um todo, bem entendido.

Nossas masmorras, digo, prisões, malgrado já sem vagas, não comportam sequer a metade das pessoas que contra si tem mandado de prisão – e a construirmos mais delas comprometeremos de forma aguda o orçamento público e nossa economia. Isto não nos interessa.

Nossas masmorras, digo, prisões, são caríssimas. Gastamos fortunas com manutenção e recursos humanos. E a relação custo-benefício nos é inteiramente desfavorável, dado estarem os índices de reincidência em torno de 80%. Isto também não nos interessa.

Nossas masmorras, digo, prisões, normalmente devolvem às ruas seres em condições bastante piores do que quando nelas ingressaram. Todos eles retornarão ao nosso convívio. Frequentarão as mesmas ruas percorridas por nós e pelos nossos entes queridos. Isto também não nos interessa.

Nossas masmorras, digo, prisões, são palco de torturas e chacinas costumeiras – que são noticiadas. Atraem atenção desfavorável para nosso país, rotineiramente respondendo a processos em cortes internacionais. Isto atrapalha nossos negócios. Nossa economia. Isto também não nos interessa.

Nossas masmorras, digo, prisões, estão inviabilizadas. Não há mais vagas. Angustiado, nosso sistema legal deixa de prender muitos que presos deveriam estar. Cria impunidade. Desestimula os agentes da lei. O resultado é uma das maiores taxas de criminalidade do planeta. Isto é péssimo para a economia. Isto pode até resultar na morte nossa ou de algum ente querido. Assim, isto também não nos interessa.

Do exposto podemos facilmente concluir que reformar nosso sistema punitivo seria um bom negócio. Mas como fazê-lo?

Penso que um importante passo deveria ser o de contemplar a caminhada da humanidade, ao longo da qual sempre foi julgado o crime, e não o criminoso. A regra sempre foi a de estabelecer-se que a cada crime corresponde uma certa pena – quase sempre de prisão. Quando muito realizamos alguma individualização quanto à duração da pena, mas não quanto à sua natureza.

Esta prática, milenar, ignora que as pessoas e situações são diferentes – e que as penas também deveriam sê-lo. Eis aí algo óbvio.

Sejamos práticos: importa-nos, ao fim do cabo, apenas resolver um problema. Eis quando surgirá a constatação simples de que, considerado um mesmo crime, quanto a alguns a solução seria a perda de uma profissão duramente conquistada. Para outros, um gravame financeiro. Haverá aqueles que apenas responderão a tratamento médico. E, sem dúvida alguma, existirão casos nos quais imprescindível a privação de liberdade.

É mesmo surpreendente que, em pleno terceiro milênio, ainda não utilizamos a ciência – e mesmo a lógica – para definirmos qual pena seria mais eficiente. Satisfaz-nos, em verdade, apenas o conteúdo de vingança que as masmorras tão bem simbolizam.

Aliás, tão mais grave este quadro quando mesmo as penas privatizas de liberdade deveriam levar em conta o interesse público, admitindo, por exemplo, o cumprimento domiciliar.

Peço licença para recorrer a um precedente que retirei, há alguns dias, da Suécia. Dado condenado, primário, foi autorizado a cumprir sua pena de seis meses de prisão em casa, de onde poderia continuar gerenciando seu negócio, do qual dependem 23 famílias.

Meditemos sobre isso: houve a preservação da empresa e dos empregos que gera. Uma família restou preservada de traumas. Executou-se uma punição, dado que um condenado efetivamente esteve fora das ruas pelo tempo da condenação. E praticamente não foi onerado o Estado – aliás, muito pelo contrário, continuou a receber os tributos que a empresa do condenado gera.

Em nosso país, cujas masmorras já não tem vagas, isto seria impossível. Nossa cultura é a de tentar prender a torto e a direito – um péssimo negócio. Não compreendemos que acabamos por impor uma dor infinitamente superior à daquela pena que a lei prevê – com imensos prejuízos para o país.

Pensemos nos estudantes que perdem seus cursos. Nos trabalhadores que lançamos ao desemprego. Nas famílias que deixamos sem sustento. Nas pessoas que pioramos – sim, simplesmente pioramos – enviando para fétidas masmorras. Nas vidas que desgraçamos.

Permito-me um alerta: não sou juiz conhecido por arroubos de liberalidade – e muito pelo contrário. Sou inimigo feroz da impunidade. Já a sofri na pele em minha própria família, e por duas vezes. Mas daí a ficar impassível diante das vidas que destruo ao impor penas totalmente incompatíveis com a realidade vai longa distância.

É este, enfim, nosso sistema legal! Há algumas décadas meu saudoso pai, em um de seus muitos livros, comparou-o às belas mobílias de madeira maciça que decoravam os espaçosos solares de nossos antepassados.

Ricas em tamanho e beleza, bem adornaram uma época. Mas converteram-se em sério problema na hora da mudança para os modernos apartamentos – não cabem nos elevadores e não passam pelas escadas. Ademais, não as comportam nossos cômodos.

Repositórios de lembranças inestimáveis, prendem-nos ao passado. Causam-nos a um só tempo angústia e apego. E sem que o percebamos tornam piores nossas vidas – até que alcançado aquele ponto inevitável de ruptura, no qual parte-se inexoravelmente rumo ao novo.

Nosso mundo das leis, eis a verdade nua e crua, já está neste “ponto de insustentabilidade”. Basta que o olhemos com olhos de ver.

Desenvolver um novo substrato jurídico, compatível com as exigências do atual momento histórico, será a tarefa dos artífices do porvir. Da nova geração. Dos novos juristas, definidos estes – corretamente – como aqueles que efetivamente criam o Direito.

Os desafios serão imensos. Haverá que se superar toda uma barreira cultural. Que se quebrar a resistência ao novo. Que se reduzir a altura das chamas na fogueira das vaidades. Que se enfrentar a ganância assassina de alguns.

Dir-se-ia ser esta, em verdade, uma tarefa para os séculos. Porém, estes não nos contemplarão com tamanha tolerância. Vivemos, já, a materialização daquele sábio alerta de Disraeli à monarca britânica: “Majestade, o povo está insatisfeito e clama por mudanças – e se elas não forem feitas por nós serão feitas sem nós e, o que é pior, contra nós”.

É verdade: esta nova geração estará, antes de tudo, a lutar por si própria. Por suas condições de trabalho. A quem duvidar que nos contemple hoje, enquanto profissionais da área jurídica – não somos, em termos de prerrogativas e garantias, que pálida imagem do que éramos há alguns poucos anos. E amanhã?

Sim, seja por ideal ou por egoísmo, esta não é daquelas quadras que permitem cômoda ida à mediocridade da bacia de Pilatos.

As coisas da vida passam – e passam muito depressa. Quando menos pensarmos chegaremos ao momento culminante de nossas vidas – aquele no qual ela termina. Que nele possamos, enquanto privilegiados com a bênção que é um Curso de Direito, ao menos balbuciar aquela frase que define uma existência: “tentei, com honestidade, fazer a minha pequena parte”.

Por Pedro Valls Feu Rosa

Comunicação/Cal/Pública/2021

 

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